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Com mais de 160 horas gravadas, podcast “Perdigoto” mapeia o teatro brasileiro em sua diversidade


Com episódios semanais, projeto de Aury Porto e Leonardo Ventura reúne artistas, pesquisadores e grupos de todo o país para discutir memória, formação, políticas culturais e práticas cênicas

O cenário das artes cênicas brasileiras ganha um registro histórico de fôlego com a consolidação do Podcast Perdigoto. Idealizado, roteirizado e apresentado pelos atores Aury Porto e Leonardo Ventura, o projeto nasce de um esforço monumental de dez meses de pesquisa e escuta para documentar as memórias, práticas e pensamentos de quem constrói o teatro no Brasil hoje. Realizado pela mundana companhia no âmbito de sua residência artística no Instituto Capobianco, o podcast já acumula cerca de 165 horas de gravações com 55 convidados de todas as regiões do país, lançando episódios semanais que desafiam o apagamento histórico de territórios fora do eixo Rio–São Paulo.

A gênese do projeto remonta ao período da pandemia, quando Aury Porto percebeu o vácuo de conteúdos teatrais no universo dos podcasts — o que ele define como "rádio sob demanda". Para preencher essa lacuna, uniu-se a Leonardo Ventura e aos curadores Alexandre Mate e Wlad Lima, referências na crítica e na pesquisa acadêmica. O nome "Perdigoto" sintetiza o espírito da obra: a troca direta, a oralidade e a presença física. “Perdigoto é de falar e ouvir. É essa saliva que a gente produz tanto fazendo teatro quanto fazendo rádio”, explica Aury.


Um Manifesto de Insurgência e Memória

Desde o episódio de estreia, "As Vozes Insurgentes na História do Teatro Brasileiro", o programa estabelece um tom político ao questionar narrativas consagradas. Com as participações de Alexandre Mate, Valéria Andrade e Álvaro Assad, o debate denuncia como figuras populares foram excluídas dos registros oficiais. Essa investigação sobre a memória ganha contornos práticos no diálogo entre Marcos Malafaia (Grupo Giramundo/MG) e Lindolfo Amaral (Grupo Imbuaça/SE), que discutem a preservação material de acervos de bonecos e a transmissão sensível de saberes imateriais.


A pluralidade estética do Brasil é explorada ao aproximar o Teatro de Revista, em suas origens urbanas e musicais, das Dramistas do interior do Ceará — uma tradição majoritariamente feminina que preserva fábulas e histórias geracionais. O podcast revela como essas manifestações, embora distintas em origem, dialogam na construção de uma identidade cênica nacional.


Formação, Pedagogia e a Tensão Acadêmica

O debate sobre o "fazer" e o "ensinar" ocupa lugar central. O Perdigoto promove o encontro entre a Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (RS), representada por Tânia Farias, e a experiência universitária de Cláudio Cajaíba (UFBA), confrontando a liberdade dos cursos livres com o rigor acadêmico. Essa reflexão se estende ao encontro histórico entre Amir Haddad (Grupo Tá na Rua/RJ) e a diretora Maria Thaís. Apesar de pertencerem a gerações e estéticas diferentes, ambos convergem na defesa de uma pedagogia indissociável da criação e na figura do artista como um cidadão ativo, recusando perspectivas burguesas de produção.

A relação entre a universidade e o palco é aprofundada por Cibele Forjaz (SP) e Gisele Vasconcelos (MA), que analisam os ganhos da pesquisa acadêmica em contraste com as burocracias que muitas vezes engessam a liberdade criativa.


Descentralização e Territórios de Resistência

O projeto percorre o Brasil profundo para ouvir Tácito Borralho (MA), criador do Laborarte, e Leidson Ferraz (PE), que traça um panorama dos grupos de Recife fincados em movimentos sociais e no legado de Hermilo Borba Filho. O podcast também documenta pesquisas decoloniais, como a busca de Lauande Aires por alternativas no Bumba meu Boi e as teorizações de Monilson Mony sobre o "Nego Fugido".

A realidade do teatro de rua é narrada pelas experiências do Grupo Ruante (RO) e do Grupo Teatro Revirado (SC). Já os desafios de continuidade em comunidades do Nordeste aparecem nas vozes do Clowns de Shakespeare (RN) e do Jucá de Teatro (CE), revelando como grupos inventam caminhos quando o apoio institucional falha. O mapeamento avança por territórios em conflito, com relatos de Fernando Cruz (Teatro Imaginário Maracangalha/MS) e Thiago Reis Vasconcelos (Cia Antropofágica/SP) sobre a ocupação poética em meio à violência urbana.


O Teatro nos Subterrâneos e nas Bordas

A diversidade de gêneros ganha voz com a mestre Iracema Oliveira (PA) e seu Teatro de Pássaros, e com Wyller Villacas (ES), inspirado na devoção do Congo. O fenômeno dos espaços não convencionais é analisado por Olinda Charone, que fala sobre o "teatro de porão" em Belém, e por Marcos Felipe, que detalha a efervescência do Teatro de Contêiner em São Paulo.

O financiamento e as políticas culturais também são esmiuçados, traçando um panorama desde o TBC, os CPCs e o Teatro de Arena até o movimento Arte contra a Barbárie. O debate sobre a descentralização dos recursos é instruído por Lela Do Cerrado (DF) e Cleber Ferreira (AM), que apresenta o conceito do "Fator Amazônico".

No último episódio disponível, o Perdigoto homenageia os brasileiros "aguerridos" que investem recursos próprios na preservação de bens artísticos: do histórico no sertão cearense de Dane de Jade à atuação na metrópole paulistana de Roberto Capobianco.


Com trilha sonora de Ivan Garro, produção de Nana Yazbek e identidade visual de Mariano Mattos Martins, o Podcast Perdigoto se consolida como um documento vivo. “Nosso público é a própria gente do teatro: quem está se formando, quem já se formou, professores e alunos. A ideia é dividir esse material com todos”, resume Aury Porto.


Serviço

Podcast Perdigoto

Idealização e apresentação: Aury Porto e Leonardo Ventura

Curadoria: Alexandre Mate e Wlad Lima

Realização: Mundana Companhia e Instituto Capobianco

Episódios: Disponíveis todas as quartas-feiras nas principais plataformas de áudio.


Link para acesso no Spotify:

https://open.spotify.com/show/7MjlMtni0NqFwvc2XyMr3Q?si=NhddvPpjSCqT5GvPvcqVAA

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